A medição do tempo (por Henri Poincaré – 1898)
Desde que não abandonemos os domínios da consciência, a
noção do tempo é bastante clara. Não só distinguimos sem qualquer esforço a
sensação presente das lembranças de sensações passadas ou da previsão de
sensações futuras mas sabemos perfeitamente quando queremos dizer quando
afirmamos que, de dois fenómenos conscientes dos quais nos recordamos, um é
anterior ao outro, isto é, entre dois fenómenos conscientes previstos, um será
anterior ao outro.
Quando dizemos que dois acontecimentos conscientes são simultâneos,
queremos dizer que se interpenetram profundamente, um no outro, de tal forma
que uma análise não os poderá apartar sem os destruir.
A ordem segundo a qual apreendemos os fenómenos conscientes
não é arbitrária. É-nos imposta e não a podemos alterar.
Tenho uma observação a adendar. Para que um conjunto de
sensações seja uma lembrança susceptível de ser classificada de acordo com o
tempo, é necessário que deixe de ser actual, que nós tenhamos perdido o senso
da sua infinda complexidade sem a qual se manteria actual. É necessário que
tenha – por assim dizer – cristalizado em torno dum centro de associações de
ideias que se comporte como uma espécie de etiqueta. É, todavia, somente quando
estas se perdem que podemos classificar as nossas lembranças no tempo, como um
botânico organiza no seu herbário as flores secas.
Mas estas etiquetas são em número finito. Tendo isto em
conta, o tempo psicológico será descontínuo. Donde provém este sentimento de
que, entre dois quaisquer instantes, existem sempre outros dois instantes?
Classificamos as nossas lembranças temporalmente mas sabemos que restam espaços
em branco. Como poderia ser se o tempo não fosse uma forma pré-existente nas
nossas mentes? Como saberíamos que existem espaços em branco, se estes não nos
são revelados pelo seu conteúdo?
Mas não é tudo. Nesta forma, queremos ir não somente aos
fenómenos da nossa consciência mas àqueles cujo palco é de outras consciências.
Ainda mais, queremos considerar os fenómenos físicos, aqueles, não sei quais,
no espaço que habitamos e de que nenhuma consciência se apercebe directamente.
É extremamente necessário porque, sem elas, a ciência deixava de existir.
Resumindo em uma palavra, é-nos fornecido o tempo psicológico e nós queremos
construir o tempo científico e físico. É aqui que a dificuldade começa, ou
antes, as dificuldades, pois nos deparamos com duas.
Eis duas consciências que são como impenetráveis uma sobre a
outra. Como fazê-las entrar no mesmo molde, medi-las com a mesma bitola? Não é
o mesmo como se quiséssemos medir com um grama ou pesar com um metro? Sabemos,
porventura, que um feito é anterior a outro, mas não o quanto.
Daí, duas dificuldades:
1. Podemos
transformar o tempo psicológico, que é qualitativo, num tempo quantitativo?
2. Podemos
reduzir a uma mesma medida os acontecimentos que se passam em mundos
diferentes?
A primeira dificuldade já foi notada há muito tempo, foi
tema de longas discussões e podemos dizer que a questão está resolvida. Não
temos a intuição directa da igualdade de dois intervalos de tempo. Aqueles que
crêem possuir essa intuição são vítimas de uma ilusão.
Quando digo que do meio-dia à uma hora, passou o mesmo tempo
que das duas às três horas, que sentido tem essa afirmação?
A menor reflexão mostra que não traz sentido algum por ela
mesma. Ela terá o sentido que lhe quero dar, por uma definição que comporta um
certo grau de arbitrariedade. Os psicólogos poderiam viver sem esta definição.
Os físicos e os astrónomos não o poderiam. Vejamos como o contornaram.
Para medir o tempo, servem-se do pêndulo e admitem, por
definição, que todos os batimentos do pêndulo têm igual duração. Mas não deixa
de ser uma primeira aproximação. A temperatura, a resistência do ar, a pressão
barométrica fazem variar o movimento do pêndulo. Se nos escapássemos a estas
causas de erro, obteríamos uma melhor aproximação, mas continuava a ser uma
aproximação. As novas causas, desprezadas até agora, eléctricas, magnéticas ou
outros vêm trazer pequenas perturbações.
Em efeito, os melhores relógios devem ser corrigidos de
tempos em tempos e as correcções deverão ser feitas com base nas observações
astronómicas. Actuamos de modo que o relógio sideral marque a mesma hora quando
a mesma estrela passa o meridiano. Por outras palavras, é o dia sideral, isto
é, a duração da rotação da Terra que é a unidade constante do tempo. Admitimos,
por uma nova definição, substituindo aquela aferente aos batimentos dum
pêndulo, que os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo têm a mesma
duração. No entanto, os astrónomos não se contentam com esta definição. Alguns
entre eles pensam que as marés actuam como um freio sobre o nosso globo e que a
rotação da Terra se torna cada vez mais lenta. Assim se explica a aceleração
aparente do movimento da lua que parece mover-se mais rápido do que a teoria
prevê porque o nosso relógio, que é a Terra, se retarda.
Tudo isso pouco importa, dizemos. Sem dúvida, os nossos
instrumentos de medida são imperfeitos, mas é suficiente que possamos conceber
um instrumento perfeito. Este ideal não pode ser atingido, mas será suficiente
ter-se concebido e ter-se trazido rigor na definição da unidade de tempo.
O pior é que este rigor não se pode encontrar. Quando nos
servimos do pêndulo para medir o tempo, qual é o postulado que admitimos
implicitamente?
É que a duração de dois fenómenos idênticos é a mesma. Ou se
preferirmos, que as mesmas causas demoram o mesmo tempo a produzir os mesmos
efeitos.
Eis, numa primeira abordagem, uma boa definição da igualdade
de duas durações. Analisemo-la, então. Será possível que a experiência venha um
dia a desmentir o nosso postulado?
Eu explico-me. Suponho que, num certo ponto do mundo, se
passa o fenómeno α produzindo como consequência, ao fim dum intervalo de tempo,
o efeito α’. Num outro ponto do mundo muito afastado do primeiro, passa-se o
fenómeno β que traz como consequência o efeito β’. Os fenómenos α e α’ são
simultâneos e o mesmo se pode dizer dos efeitos β e β’.
Numa época ulterior o fenómeno α reproduz-se em
circunstâncias muito idênticas e, simultaneamente, o fenómeno β também se
reproduz num ponto muito afastado do mundo e , aproximadamente, nas mesmas
circunstâncias.
Os efeitos α’ e β’ também se vão reproduzir. Suponho que o
efeito α’ se dará sensivelmente antes do evento β’. Se a experiência nos
proporcionasse um tal espectáculo, o nosso postulado seria desmentido.
Contudo, a experiência mostra-nos que a primeira duração αα‘
é igual à primeira duração ββ’ e que a segunda duração αα‘ é mais pequena que a
segunda duração ββ’. Pelo contrário, o nosso postulado exigiria que as duas
durações αα‘ fossem iguais entre elas e o mesmo teria de acontecer para as duas
durações ββ’. A igualdade e desigualdade deduzidas da experiência serão
incompatíveis com as duas igualdades tiradas do postulado.
Ora, podemos afirmar que as hipóteses que eu apresentei são
absurdas? Elas não trazem nada em contrário ao princípio da contradição. Sem
dúvida, elas não podem ser alcançadas sem que o princípio da razão suficiente
pareça ser violado. Mas para justificar uma definição tão fundamental, prefiro
uma outra garantia.
No que concerne à realidade física, uma causa não produz um
efeito, mas uma variedade de causas distintas contribuem para a sua produção
sem que possamos discernir o papel de cada uma delas. Os físicos procuram fazer
esta distinção mas apenas a fazem aproximadamente e jamais a farão senão
aproximadamente. É apenas aproximadamente que o movimento do pêndulo depende
unicamente da atracção da Terra mas tendo em conta todo o rigor, até a atracção
de Sirius actua sobre o pêndulo.
Nestas condições, é claro que uma causa que produz um certo
efeito numa determinada altura, apenas aproximadamente voltará a repetir.
Então devemos modificar o nosso postulado e a nossa definição.
Em vez de dizer: as mesmas causas demoram o mesmo tempo a
produzir os mesmos efeitos.
Deveremos dizer: as causas aproximadamente idênticas demoram
aproximadamente o mesmo tempo a produzir aproximadamente os mesmos efeitos.
A nossa definição é apenas aproximada.
Então, como o fez notar Calinon na sua recente memória
(Études sur les diverses grandeurs; Paris Gauthier-Villars, 1897): uma das
circunstâncias dum fenómeno qualquer é a velocidade de rotação da Terra. Se
esta velocidade varia, ela constitui, na reprodução desse fenómeno, uma
circunstância diferente. Mas supor essa velocidade constante, é o mesmo que
supor que sabemos medir o tempo.
A nossa definição não é satisfatória. É certamente aquela
que o astrónomo, que atrás citei, adopta implicitamente, quando afirma que a
rotação da Terra se vai alentando.
Que sentido tem, nas suas palavras, esta afirmação? Não o
poderemos compreender se não analisarmos as provas que nos fornecem sobre as
suas proposições.
Dizem que a fricção das marés produz calor e deve destruir
as forças vivas (energia cinética). Invocam o princípio das forças vivas ou da
conservação da energia. Afirmam que a aceleração secular da Lua, calculada com
o auxílio de lei de Newton é menor do que aquela que é deduzida das
observações, se não fizermos a correcção relativa ao retardamento da rotação
terrestre. Eles invocam a lei de Newton. Noutros termos, definem a duração do
seguinte modo: o tempo deve ser definido de modo que tanto a lei de Newton como
o princípio das forças vivas seja verificado.
A lei de Newton é uma constatação da experiência e como tal
é aproximada, o que mostra que continuamos a ter uma definição aproximada
também.
Se supusermos que adoptamos uma outra maneira de medir o
tempo, as experiências fundamentadas na lei de Newton não deixam de conservar o
mesmo sentido. Apenas o enunciado da lei será diferente porque será traduzido
numa outra linguagem. Será, contudo, menos simples.
A definição implicitamente acatada pelos astrónomos pode ser
resumida do seguinte modo:
O tempo deve ser definido de modo que as equações da
mecânica sejam as mais simples possíveis. Por outras palavras, não existe a
maneira mais válida de medir o tempo. Apenas a que é geralmente adoptada é a
mais cómoda. De dois relógios não é justo dizer que um anda bem e outro mal.
Podemos dizer que nos trás vantagens em nos reportarmos às indicações do
primeiro do que às do segundo.
A dificuldade com a qual nos vamos ocupar foi, como disse,
muitas vezes notada. Entre as obras mais recentes onde surge esta questão,
cito, para além do opúsculo de Calinon, o tratado de mecânica de Andrade.
A segunda dificuldade tem, até agora, atraído menos
atenções. Ela é muito análoga à primeira e mesmo logicamente, tenho o dever de
a discutir de seguida.
Dois fenómenos físicos passam-se em duas consciências
diferentes. Quando digo que estes são simultâneos, o que quero realmente dizer?
Quando digo que um fenómeno físico que se passa fora de todas as consciências é
anterior ou posterior a um fenómeno psicológico, que quero dizer com isso?
Em 1572, Tycho Braché observa no céu uma nova estrela. Uma
imensa conflagração é produzida naqueles astros tão distantes. Mas ela
produziu-se muito tempo antes. Levou pelo menos duzentos anos desde que a luz
que partiu desta estrela atingiu a nossa Terra. Esta conflagração é anterior à
descoberta da América.
Pois bem, quando digo isto, quando considero este fenómeno
gigantesco que não pôde ter qualquer testemunha, uma vez que os satélites
destas estrelas não são habitados, quando digo que este fenómeno é anterior à
formação da imagem visual da ilha “La Española” na consciência do Cristóvão
Colombo, que quero dizer?
É suficiente um pouco de reflexão para que todas estas
afirmações são desprovidas de qualquer sentido. Elas não o poderão ter senão
por intermédio de uma convenção.
Doravante, nos propomos averiguar como podemos evitar a
ideia de fazer entrar, num mesmo quadro, uma série de mundos impenetráveis uns
sobre os outros. Gostaríamos de representar o Universo exterior e é desta forma
que cremos compreendê-lo.
Esta representação, jamais na alcançaremos, sabemos: a nossa
doença é demasiado grande.
Nós queremos, ao menos, que possa ser concebido por uma
inteligência infinita para a qual tal representação seja possível, uma espécie
de grande consciência que de tudo se apercebe, e que classifica tudo ao longo
do nosso tempo, o pouco que vemos.
Esta hipótese é grosseira e incompleta, porque esta
inteligência suprema será um semideus. Infinito num sentido, será limitado em
outro porque terá do passado uma lembrança imperfeita. Não poderá ter outra
porque todas as recordações lhe serão igualmente presentes e ele não terá tempo
para todas elas.
E ainda quando falamos do tempo, por tudo o que se passa
para além de nós, adoptamos inconscientemente esta hipótese. Colocamo-nos no
lugar desse deus imperfeito. Os próprios ateus se colocam nesse lugar ou será
Deus, se existir.
Isto que tenho vindo a dizer, mostra-nos talvez porque
tentámos enquadrar todos os fenómenos físicos na mesma moldura. Mas tal não
pode passar por uma definição de simultaneidade, uma vez que essa inteligência
hipotética, se existisse, seria impenetrável por nós. É necessário procurar
outra coisa.
As definições usuais concordantes com o tempo psicológico,
não nos são suficientes. Dois feitos psicológicos são ligados tão estreitamente
que a análise não os poderá separar sem os deturpar. Será o mesmo para dois
eventos físicos? O meu presente não estará mais próximo do meu passado de ontem
que o presente de Sirius?
Dissemos também que dois feitos devem ser encarados como
simultâneos quando a ordem da sua sucessão pode ser invertida à vontade. É
evidente que esta definição não é conveniente para dois feitos físicos
separados, entre si, por grandes distâncias e que, no que lhes concerne, não
compreendemos o que poderá ser essa reversibilidade. Então, é o conceito de
sucessão que carecemos definir.
Procuremos dar-nos conta do que entendemos por
simultaneidade ou anterioridade e, para tal, analisemos alguns exemplos. Eu
escrevo uma carta. Essa carta é lida por um amigo ao qual a enderecei. Eis dois
feitos que tiveram, como palco, duas consciências diferentes. Ao escrever esta
carta, eu possuía uma imagem visual e o meu amigo possuiu, por seu turno, esta
mesma imagem ao ler a carta.
Mesmo que estes dois feitos passam-se em dois mundos
interpenetráveis, eu não hesitarei em encarar o primeiro como anterior ao
segundo porque creio ser este a causa.
Eu ouço um trovão e concluo que se deu uma descarga
eléctrica. Não hesito em considerar o fenómeno físico como anterior à imagem
sonora notada pela minha consciência, porque creio que se tratou da causa.
Eis a regra que seguimos e a única que poderemos seguir.
Quando um fenómeno nos parece a causa de um outro, encaramo-lo como anterior.
Então é pela causa que definimos o tempo. Mas também se
segue que quando dois feitos nos parecem ligados por uma relação constante,
como reconhecemos qual é a causa ou qual é o efeito? Admitimos que o feito
anterior, o antecedente, é a causa de outro, do consequente. É, então, por
intermédio do tempo que definimos a causa. Como saímos deste imbróglio de
princípo? Dizemos às vezes post hoc, ergo propter hoc, às vezes propter hoc,
ego post hoc. Jamais sairemos deste círculo vicioso?
Vejamos, não como nos meneamos em nos livrarmos dele, porque
não nos livramos completamente, mas como procuramos tal saída.
Executo um acto voluntário A e sofro, de seguida, uma
sensação D que vejo como uma consequência do acto A. Por outro lado, por uma
qualquer razão, deduzo que esta consequência não é imediata mas que se produzem
fora da minha consciência, dois feitos B e C, os quais não testemunho e de modo
que B seja o efeito de A, que C seja o efeito de B e D seja o efeito de C.
Mas porquê assim? Se creio ter razões para encarar os feitos
A, B, C e D como ligados entre si por uma relação de causalidade, porque
ordená-los numa ordem causal A, B, C e D e ao mesmo tempo numa ordem
cronológica ABCD e não noutra ordem qualquer?
Vejo bem que no acto A tenho o sentimento de ter sido activo
enquanto sofrendo a sensação , tenho o sentimento de ter sido passivo. É por
isto que encaro o evento A como a causa inicial e como o efeito último. É por isso que coloco A
no início da sucessão e no seu final.
Mas porque meter B antes de C ao invés de C antes de B?
Se nos puserem tal questão, respondemos normalmente: sabemos
bem que é B a causa de C porque vemos sempre B se dar após C. Estes dois
fenómenos, quando somos testemunhas, passam-se sempre numa certa ordem. Quando
fenómenos análogos se produzem sem testemunhas, não há qualquer razão para que
essa ordem seja invertida.
Sem dúvida, mas tenhamos cuidado. Nós jamais conhecemos
directamente os fenómenos físicos B e C. Aquilo que conhecemos são as sensações
B’ e C’ produzidas respectivamente por B e por C. A nossa consciência
ensina-nos imediatamente que B’ precede C’ e admitimos que B e C se sucedem na
mesma ordem.
Esta regra parece, com efeito, bastante natural, ainda que
muitas vezes sejamos conduzidos a afastá-la. Nós só nos apercebemos do ruído do
trovão após alguns segundos da descarga eléctrica das nuvens. Entre dois
relâmpagos, um longe e outro perto, o primeiro não pode ser anterior ao
segundo, uma vez que o som do segundo nos chega depois do ruído do primeiro?
Uma outra dificuldade; temos o direito de falar sobre a
causa de um fenómeno? Se todas as partes do Universo são solidárias dentro de
uma certa medida, um fenómeno qualquer não será parte do efeito de uma única
causa mas da resultante de uma infinidade de causas, dizemos muitas vezes, o
estado do Universo um instante anterior.
Como enunciar regras aplicáveis a circunstâncias tão
complexas? E portanto, é devido a isto que estas regras não poderão ser gerais
e rigorosas. Para não nos perdermos nesta infinita complexidade, façamos uma
hipótese mais simples. Consideremos três astros, por exemplo, o Sol, Júpiter e
Saturno. Para simplificar, encaramo-los como pontos materiais e isolados do
resto do mundo. As posições e velocidades dos corpos num dado instante são
suficientes para determinar as posições e velocidades no instante seguinte e,
consequentemente, num instante qualquer. As suas posições no instante t
determinam as suas posições no instante t+h, assim como as suas posições no
instante t-h.
E ainda há mais. A posição de Júpiter no instante t,
juntamente com a posição de Saturno no instante t+a, permite determinar a
posição de Júpiter num instante qualquer, bem como a posição de Saturno num
instante qualquer.
O conjunto de posições que ocupa Júpiter no instante t+ε e
Saturno no instante t+a+ε está ligado ao conjunto das posições que ocupa
Júpiter no instante t e ocupa Saturno no instante t+a, de acordo com leis tão
precisas como aquela de Newton, ou até mais complicadas.
Sendo assim, porque não encarar um dos conjuntos como a
causa do outro, que conduz a considerar como simultâneos o instante t de
Júpiter e o instante t+a de Saturno? Não poderá haver outra coisa, senão a
razão de comodidade e de simplicidade, muito forte, é verdade.
Mas passemos aos exemplos menos artificiais. Para nos darmos
conta da definição implícita aceite pelos estudiosos, estudemos as suas obras e
procuremos determinar quais as regras eles procuram para a simultaneidade.
Escolho dois exemplos simples: a medição da velocidade da luz e a medição das
longitudes.
Quando um astrónomo me diz que um fenómeno estelar, que o
seu telescópio lhe revelou nesse momento, se passou entretanto há cinquenta
anos, procuro saber o que ele quer dizer com isso, pergunto-lhe como sabe, isto
é, como é que ele mediu a velocidade da luz.
Ele começou por admitir que a luz tem uma velocidade
constante e, em particular, que a sua velocidade é a mesma em todas as
direcções. Eis um postulado sem o qual nenhuma medição desta velocidade poderia
ser tentada. Este postulado jamais poderá ser verificado directamente pela
experiência. Poderá ser contradito por ela, se os resultados das diversas
medições não forem concordantes. Deveremos nos sentir satisfeitos que não se dê
tal contradição e que as pequenas discordâncias que se produzam possam
facilmente ser explicadas.
O postulado, em todo o caso, conforme ao princípio da razão
suficiente, foi adoptado por toda a gente. Quero lembrar que nos fornece uma
nova regra para a determinação da simultaneidade, inteiramente diferente
daquela que nós vimos enunciadas atrás. Admitindo este postulado, vejamos como
foi medida a velocidade da luz. Sabemos que Roemer se serviu dos eclipses dos
satélites de Júpiter e procurou determinar o quanto esses eventos se atrasavam
relativamente à predição.
Mas como fez tal predição? Recorreu-se das leis
astronómicas, por exemplo, a lei de Newton.
Os efeitos observados poderiam muito bem ser explicados se
atribuíssemos à velocidade da luz um valor um pouco diferente do valor adoptado
e se admitíssemos que a lei de Newton é aproximada. Somente seríamos conduzidos
as substituir a lei de Newton por uma outra mais complicada. Deste modo,
adoptamos para a velocidade da luz um tal valor que as leis astronómicas
compatíveis com esse valor são tão simples quanto possível.
Quando os marinheiros ou os geógrafos determinam uma
longitude, eles resolvem o problema de que nos ocupamos. Eles têm, sem estar em
Paris, de saber a hora de Paris. Como o fazem?
Ora bem, levam um cronómetro sincronizado de Paris. O
problema qualitativo da simultaneidade é reduzido ao problema quantitativo da
medição do tempo. Não tenho de lembrar as dificuldades inerentes a este último
problema porque já nele atrás insisti longamente.
Ou então, observam um fenómeno astronómico, tal como um
eclipse da lua e admitem que é apercebido simultaneamente em todos os pontos do
globo.
Tal não é inteiramente verdade, porque a propagação da luz
não é instantânea. Se quisermos uma exactidão absoluta, haverá uma correcção a
fazer de acordo com uma regra complicada.
Ou então, por fim, servem-se do telégrafo. É claro que a
recepção do sinal em Berlim, por exemplo, é posterior à expedição desse mesmo
sinal em Paris. É a regra da causa e do efeito analisada anteriormente. Mas
posterior em quanto? Em geral, negligenciamos a duração da transmissão e encaramos
os dois eventos como simultâneos. Mas, para ser rigoroso, faltava fazer uma
pequena correcção por um cálculo complicado. Não a fazemos na prática porque
seria ainda mais insignificante que os erros de observação. A sua necessidade
teórica permanece, no entanto, no nosso ponto de vista, que corresponde ao de
uma definição rigorosa.
Desta discussão retenho duas coisas:
1. As regras
aplicadas são muito variadas.
2. É difícil
separar o problema qualitativo da simultaneidade do problema quantitativo da
medição do tempo. Quer nos sirvamos dum cronómetro, quer conheçamos o valor da
velocidade de uma transmissão, como a da luz, porque não sabemos determinar
medir uma tal velocidade sem medir o tempo.
É conveniente concluir. Nós não temos a intuição directa da
simultaneidade e muito menos da igualdade de duas durações. Se acreditamos ter
essa intuição, é uma ilusão. Nós substituímo-lo por intermédio de certas regras
que aplicamos quase sem nos darmos conta. Mas qual é a natureza destas regras?
Não há regra geral, não há regra rigorosa, uma
multiplicidade de pequenas regras aplicáveis a cada caso particular. Estas
regras não se nos impõem e podemos divertir-nos a inventar outras. No entanto
não nos podemos desviar sem complicar demasiado as leis da física, da mecânica,
da astronomia.
Nós escolhemos então estas regras, não porque são
verdadeiras, mas porque são as mais cómodas e poderíamos resumi-las deste modo:
«A simultaneidade de dois eventos, ou a ordem da sua
sucessão, a igualdade de duas durações, deverão ser definidas de modo que o
enunciado das leis naturais seja tão simples quanto possível. Por outras
palavras, todas estas regras, todas estas definições são o fruto dum
oportunismo inconsciente.»