sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A medição do tempo (por Henri Poincaré – 1898)

A medição do tempo (por Henri Poincaré – 1898)


Desde que não abandonemos os domínios da consciência, a noção do tempo é bastante clara. Não só distinguimos sem qualquer esforço a sensação presente das lembranças de sensações passadas ou da previsão de sensações futuras mas sabemos perfeitamente quando queremos dizer quando afirmamos que, de dois fenómenos conscientes dos quais nos recordamos, um é anterior ao outro, isto é, entre dois fenómenos conscientes previstos, um será anterior ao outro.

Quando dizemos que dois acontecimentos conscientes são simultâneos, queremos dizer que se interpenetram profundamente, um no outro, de tal forma que uma análise não os poderá apartar sem os destruir.

A ordem segundo a qual apreendemos os fenómenos conscientes não é arbitrária. É-nos imposta e não a podemos alterar.

Tenho uma observação a adendar. Para que um conjunto de sensações seja uma lembrança susceptível de ser classificada de acordo com o tempo, é necessário que deixe de ser actual, que nós tenhamos perdido o senso da sua infinda complexidade sem a qual se manteria actual. É necessário que tenha – por assim dizer – cristalizado em torno dum centro de associações de ideias que se comporte como uma espécie de etiqueta. É, todavia, somente quando estas se perdem que podemos classificar as nossas lembranças no tempo, como um botânico organiza no seu herbário as flores secas.

Mas estas etiquetas são em número finito. Tendo isto em conta, o tempo psicológico será descontínuo. Donde provém este sentimento de que, entre dois quaisquer instantes, existem sempre outros dois instantes? Classificamos as nossas lembranças temporalmente mas sabemos que restam espaços em branco. Como poderia ser se o tempo não fosse uma forma pré-existente nas nossas mentes? Como saberíamos que existem espaços em branco, se estes não nos são revelados pelo seu conteúdo?

Mas não é tudo. Nesta forma, queremos ir não somente aos fenómenos da nossa consciência mas àqueles cujo palco é de outras consciências. Ainda mais, queremos considerar os fenómenos físicos, aqueles, não sei quais, no espaço que habitamos e de que nenhuma consciência se apercebe directamente. É extremamente necessário porque, sem elas, a ciência deixava de existir. Resumindo em uma palavra, é-nos fornecido o tempo psicológico e nós queremos construir o tempo científico e físico. É aqui que a dificuldade começa, ou antes, as dificuldades, pois nos deparamos com duas.

Eis duas consciências que são como impenetráveis uma sobre a outra. Como fazê-las entrar no mesmo molde, medi-las com a mesma bitola? Não é o mesmo como se quiséssemos medir com um grama ou pesar com um metro? Sabemos, porventura, que um feito é anterior a outro, mas não o quanto.

Daí, duas dificuldades:

1.       Podemos transformar o tempo psicológico, que é qualitativo, num tempo quantitativo?

2.       Podemos reduzir a uma mesma medida os acontecimentos que se passam em mundos diferentes?

A primeira dificuldade já foi notada há muito tempo, foi tema de longas discussões e podemos dizer que a questão está resolvida. Não temos a intuição directa da igualdade de dois intervalos de tempo. Aqueles que crêem possuir essa intuição são vítimas de uma ilusão.

Quando digo que do meio-dia à uma hora, passou o mesmo tempo que das duas às três horas, que sentido tem essa afirmação?

A menor reflexão mostra que não traz sentido algum por ela mesma. Ela terá o sentido que lhe quero dar, por uma definição que comporta um certo grau de arbitrariedade. Os psicólogos poderiam viver sem esta definição. Os físicos e os astrónomos não o poderiam. Vejamos como o contornaram.

Para medir o tempo, servem-se do pêndulo e admitem, por definição, que todos os batimentos do pêndulo têm igual duração. Mas não deixa de ser uma primeira aproximação. A temperatura, a resistência do ar, a pressão barométrica fazem variar o movimento do pêndulo. Se nos escapássemos a estas causas de erro, obteríamos uma melhor aproximação, mas continuava a ser uma aproximação. As novas causas, desprezadas até agora, eléctricas, magnéticas ou outros vêm trazer pequenas perturbações.

Em efeito, os melhores relógios devem ser corrigidos de tempos em tempos e as correcções deverão ser feitas com base nas observações astronómicas. Actuamos de modo que o relógio sideral marque a mesma hora quando a mesma estrela passa o meridiano. Por outras palavras, é o dia sideral, isto é, a duração da rotação da Terra que é a unidade constante do tempo. Admitimos, por uma nova definição, substituindo aquela aferente aos batimentos dum pêndulo, que os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo têm a mesma duração. No entanto, os astrónomos não se contentam com esta definição. Alguns entre eles pensam que as marés actuam como um freio sobre o nosso globo e que a rotação da Terra se torna cada vez mais lenta. Assim se explica a aceleração aparente do movimento da lua que parece mover-se mais rápido do que a teoria prevê porque o nosso relógio, que é a Terra, se retarda.

Tudo isso pouco importa, dizemos. Sem dúvida, os nossos instrumentos de medida são imperfeitos, mas é suficiente que possamos conceber um instrumento perfeito. Este ideal não pode ser atingido, mas será suficiente ter-se concebido e ter-se trazido rigor na definição da unidade de tempo.

O pior é que este rigor não se pode encontrar. Quando nos servimos do pêndulo para medir o tempo, qual é o postulado que admitimos implicitamente?

É que a duração de dois fenómenos idênticos é a mesma. Ou se preferirmos, que as mesmas causas demoram o mesmo tempo a produzir os mesmos efeitos.

Eis, numa primeira abordagem, uma boa definição da igualdade de duas durações. Analisemo-la, então. Será possível que a experiência venha um dia a desmentir o nosso postulado?

Eu explico-me. Suponho que, num certo ponto do mundo, se passa o fenómeno α produzindo como consequência, ao fim dum intervalo de tempo, o efeito α’. Num outro ponto do mundo muito afastado do primeiro, passa-se o fenómeno β que traz como consequência o efeito β’. Os fenómenos α e α’ são simultâneos e o mesmo se pode dizer dos efeitos β e β’.

Numa época ulterior o fenómeno α reproduz-se em circunstâncias muito idênticas e, simultaneamente, o fenómeno β também se reproduz num ponto muito afastado do mundo e , aproximadamente, nas mesmas circunstâncias.

Os efeitos α’ e β’ também se vão reproduzir. Suponho que o efeito α’ se dará sensivelmente antes do evento β’. Se a experiência nos proporcionasse um tal espectáculo, o nosso postulado seria desmentido.

Contudo, a experiência mostra-nos que a primeira duração αα‘ é igual à primeira duração ββ’ e que a segunda duração αα‘ é mais pequena que a segunda duração ββ’. Pelo contrário, o nosso postulado exigiria que as duas durações αα‘ fossem iguais entre elas e o mesmo teria de acontecer para as duas durações ββ’. A igualdade e desigualdade deduzidas da experiência serão incompatíveis com as duas igualdades tiradas do postulado.

Ora, podemos afirmar que as hipóteses que eu apresentei são absurdas? Elas não trazem nada em contrário ao princípio da contradição. Sem dúvida, elas não podem ser alcançadas sem que o princípio da razão suficiente pareça ser violado. Mas para justificar uma definição tão fundamental, prefiro uma outra garantia.

No que concerne à realidade física, uma causa não produz um efeito, mas uma variedade de causas distintas contribuem para a sua produção sem que possamos discernir o papel de cada uma delas. Os físicos procuram fazer esta distinção mas apenas a fazem aproximadamente e jamais a farão senão aproximadamente. É apenas aproximadamente que o movimento do pêndulo depende unicamente da atracção da Terra mas tendo em conta todo o rigor, até a atracção de Sirius actua sobre o pêndulo.

Nestas condições, é claro que uma causa que produz um certo efeito numa determinada altura, apenas aproximadamente voltará a repetir.

Então devemos modificar o nosso postulado e a nossa definição.

Em vez de dizer: as mesmas causas demoram o mesmo tempo a produzir os mesmos efeitos.

Deveremos dizer: as causas aproximadamente idênticas demoram aproximadamente o mesmo tempo a produzir aproximadamente os mesmos efeitos.

A nossa definição é apenas aproximada.

Então, como o fez notar Calinon na sua recente memória (Études sur les diverses grandeurs; Paris Gauthier-Villars, 1897): uma das circunstâncias dum fenómeno qualquer é a velocidade de rotação da Terra. Se esta velocidade varia, ela constitui, na reprodução desse fenómeno, uma circunstância diferente. Mas supor essa velocidade constante, é o mesmo que supor que sabemos medir o tempo.

A nossa definição não é satisfatória. É certamente aquela que o astrónomo, que atrás citei, adopta implicitamente, quando afirma que a rotação da Terra se vai alentando.

Que sentido tem, nas suas palavras, esta afirmação? Não o poderemos compreender se não analisarmos as provas que nos fornecem sobre as suas proposições.

Dizem que a fricção das marés produz calor e deve destruir as forças vivas (energia cinética). Invocam o princípio das forças vivas ou da conservação da energia. Afirmam que a aceleração secular da Lua, calculada com o auxílio de lei de Newton é menor do que aquela que é deduzida das observações, se não fizermos a correcção relativa ao retardamento da rotação terrestre. Eles invocam a lei de Newton. Noutros termos, definem a duração do seguinte modo: o tempo deve ser definido de modo que tanto a lei de Newton como o princípio das forças vivas seja verificado.

A lei de Newton é uma constatação da experiência e como tal é aproximada, o que mostra que continuamos a ter uma definição aproximada também.

Se supusermos que adoptamos uma outra maneira de medir o tempo, as experiências fundamentadas na lei de Newton não deixam de conservar o mesmo sentido. Apenas o enunciado da lei será diferente porque será traduzido numa outra linguagem. Será, contudo, menos simples.

A definição implicitamente acatada pelos astrónomos pode ser resumida do seguinte modo:

O tempo deve ser definido de modo que as equações da mecânica sejam as mais simples possíveis. Por outras palavras, não existe a maneira mais válida de medir o tempo. Apenas a que é geralmente adoptada é a mais cómoda. De dois relógios não é justo dizer que um anda bem e outro mal. Podemos dizer que nos trás vantagens em nos reportarmos às indicações do primeiro do que às do segundo.

A dificuldade com a qual nos vamos ocupar foi, como disse, muitas vezes notada. Entre as obras mais recentes onde surge esta questão, cito, para além do opúsculo de Calinon, o tratado de mecânica de Andrade.

A segunda dificuldade tem, até agora, atraído menos atenções. Ela é muito análoga à primeira e mesmo logicamente, tenho o dever de a discutir de seguida.

Dois fenómenos físicos passam-se em duas consciências diferentes. Quando digo que estes são simultâneos, o que quero realmente dizer? Quando digo que um fenómeno físico que se passa fora de todas as consciências é anterior ou posterior a um fenómeno psicológico, que quero dizer com isso?

Em 1572, Tycho Braché observa no céu uma nova estrela. Uma imensa conflagração é produzida naqueles astros tão distantes. Mas ela produziu-se muito tempo antes. Levou pelo menos duzentos anos desde que a luz que partiu desta estrela atingiu a nossa Terra. Esta conflagração é anterior à descoberta da América.

Pois bem, quando digo isto, quando considero este fenómeno gigantesco que não pôde ter qualquer testemunha, uma vez que os satélites destas estrelas não são habitados, quando digo que este fenómeno é anterior à formação da imagem visual da ilha “La Española” na consciência do Cristóvão Colombo, que quero dizer?

É suficiente um pouco de reflexão para que todas estas afirmações são desprovidas de qualquer sentido. Elas não o poderão ter senão por intermédio de uma convenção.

Doravante, nos propomos averiguar como podemos evitar a ideia de fazer entrar, num mesmo quadro, uma série de mundos impenetráveis uns sobre os outros. Gostaríamos de representar o Universo exterior e é desta forma que cremos compreendê-lo.

Esta representação, jamais na alcançaremos, sabemos: a nossa doença é demasiado grande.

Nós queremos, ao menos, que possa ser concebido por uma inteligência infinita para a qual tal representação seja possível, uma espécie de grande consciência que de tudo se apercebe, e que classifica tudo ao longo do nosso tempo, o pouco que vemos.

Esta hipótese é grosseira e incompleta, porque esta inteligência suprema será um semideus. Infinito num sentido, será limitado em outro porque terá do passado uma lembrança imperfeita. Não poderá ter outra porque todas as recordações lhe serão igualmente presentes e ele não terá tempo para todas elas.

E ainda quando falamos do tempo, por tudo o que se passa para além de nós, adoptamos inconscientemente esta hipótese. Colocamo-nos no lugar desse deus imperfeito. Os próprios ateus se colocam nesse lugar ou será Deus, se existir.

Isto que tenho vindo a dizer, mostra-nos talvez porque tentámos enquadrar todos os fenómenos físicos na mesma moldura. Mas tal não pode passar por uma definição de simultaneidade, uma vez que essa inteligência hipotética, se existisse, seria impenetrável por nós. É necessário procurar outra coisa.

As definições usuais concordantes com o tempo psicológico, não nos são suficientes. Dois feitos psicológicos são ligados tão estreitamente que a análise não os poderá separar sem os deturpar. Será o mesmo para dois eventos físicos? O meu presente não estará mais próximo do meu passado de ontem que o presente de Sirius?

Dissemos também que dois feitos devem ser encarados como simultâneos quando a ordem da sua sucessão pode ser invertida à vontade. É evidente que esta definição não é conveniente para dois feitos físicos separados, entre si, por grandes distâncias e que, no que lhes concerne, não compreendemos o que poderá ser essa reversibilidade. Então, é o conceito de sucessão que carecemos definir.

Procuremos dar-nos conta do que entendemos por simultaneidade ou anterioridade e, para tal, analisemos alguns exemplos. Eu escrevo uma carta. Essa carta é lida por um amigo ao qual a enderecei. Eis dois feitos que tiveram, como palco, duas consciências diferentes. Ao escrever esta carta, eu possuía uma imagem visual e o meu amigo possuiu, por seu turno, esta mesma imagem ao ler a carta.

Mesmo que estes dois feitos passam-se em dois mundos interpenetráveis, eu não hesitarei em encarar o primeiro como anterior ao segundo porque creio ser este a causa.

Eu ouço um trovão e concluo que se deu uma descarga eléctrica. Não hesito em considerar o fenómeno físico como anterior à imagem sonora notada pela minha consciência, porque creio que se tratou da causa.

Eis a regra que seguimos e a única que poderemos seguir. Quando um fenómeno nos parece a causa de um outro, encaramo-lo como anterior.

Então é pela causa que definimos o tempo. Mas também se segue que quando dois feitos nos parecem ligados por uma relação constante, como reconhecemos qual é a causa ou qual é o efeito? Admitimos que o feito anterior, o antecedente, é a causa de outro, do consequente. É, então, por intermédio do tempo que definimos a causa. Como saímos deste imbróglio de princípo? Dizemos às vezes post hoc, ergo propter hoc, às vezes propter hoc, ego post hoc. Jamais sairemos deste círculo vicioso?

Vejamos, não como nos meneamos em nos livrarmos dele, porque não nos livramos completamente, mas como procuramos tal saída.

Executo um acto voluntário A e sofro, de seguida, uma sensação D que vejo como uma consequência do acto A. Por outro lado, por uma qualquer razão, deduzo que esta consequência não é imediata mas que se produzem fora da minha consciência, dois feitos B e C, os quais não testemunho e de modo que B seja o efeito de A, que C seja o efeito de B e D seja o efeito de C.

Mas porquê assim? Se creio ter razões para encarar os feitos A, B, C e D como ligados entre si por uma relação de causalidade, porque ordená-los numa ordem causal A, B, C e D e ao mesmo tempo numa ordem cronológica ABCD e não noutra ordem qualquer?

Vejo bem que no acto A tenho o sentimento de ter sido activo enquanto sofrendo a sensação , tenho o sentimento de ter sido passivo. É por isto que encaro o evento A como a causa inicial e  como o efeito último. É por isso que coloco A no início da sucessão e  no seu final. Mas porque meter B antes de C ao invés de C antes de B?

Se nos puserem tal questão, respondemos normalmente: sabemos bem que é B a causa de C porque vemos sempre B se dar após C. Estes dois fenómenos, quando somos testemunhas, passam-se sempre numa certa ordem. Quando fenómenos análogos se produzem sem testemunhas, não há qualquer razão para que essa ordem seja invertida.

Sem dúvida, mas tenhamos cuidado. Nós jamais conhecemos directamente os fenómenos físicos B e C. Aquilo que conhecemos são as sensações B’ e C’ produzidas respectivamente por B e por C. A nossa consciência ensina-nos imediatamente que B’ precede C’ e admitimos que B e C se sucedem na mesma ordem.

Esta regra parece, com efeito, bastante natural, ainda que muitas vezes sejamos conduzidos a afastá-la. Nós só nos apercebemos do ruído do trovão após alguns segundos da descarga eléctrica das nuvens. Entre dois relâmpagos, um longe e outro perto, o primeiro não pode ser anterior ao segundo, uma vez que o som do segundo nos chega depois do ruído do primeiro?

Uma outra dificuldade; temos o direito de falar sobre a causa de um fenómeno? Se todas as partes do Universo são solidárias dentro de uma certa medida, um fenómeno qualquer não será parte do efeito de uma única causa mas da resultante de uma infinidade de causas, dizemos muitas vezes, o estado do Universo um instante anterior.

Como enunciar regras aplicáveis a circunstâncias tão complexas? E portanto, é devido a isto que estas regras não poderão ser gerais e rigorosas. Para não nos perdermos nesta infinita complexidade, façamos uma hipótese mais simples. Consideremos três astros, por exemplo, o Sol, Júpiter e Saturno. Para simplificar, encaramo-los como pontos materiais e isolados do resto do mundo. As posições e velocidades dos corpos num dado instante são suficientes para determinar as posições e velocidades no instante seguinte e, consequentemente, num instante qualquer. As suas posições no instante t determinam as suas posições no instante t+h, assim como as suas posições no instante t-h.

E ainda há mais. A posição de Júpiter no instante t, juntamente com a posição de Saturno no instante t+a, permite determinar a posição de Júpiter num instante qualquer, bem como a posição de Saturno num instante qualquer.

O conjunto de posições que ocupa Júpiter no instante t+ε e Saturno no instante t+a+ε está ligado ao conjunto das posições que ocupa Júpiter no instante t e ocupa Saturno no instante t+a, de acordo com leis tão precisas como aquela de Newton, ou até mais complicadas.

Sendo assim, porque não encarar um dos conjuntos como a causa do outro, que conduz a considerar como simultâneos o instante t de Júpiter e o instante t+a de Saturno? Não poderá haver outra coisa, senão a razão de comodidade e de simplicidade, muito forte, é verdade.

Mas passemos aos exemplos menos artificiais. Para nos darmos conta da definição implícita aceite pelos estudiosos, estudemos as suas obras e procuremos determinar quais as regras eles procuram para a simultaneidade. Escolho dois exemplos simples: a medição da velocidade da luz e a medição das longitudes.

Quando um astrónomo me diz que um fenómeno estelar, que o seu telescópio lhe revelou nesse momento, se passou entretanto há cinquenta anos, procuro saber o que ele quer dizer com isso, pergunto-lhe como sabe, isto é, como é que ele mediu a velocidade da luz.

Ele começou por admitir que a luz tem uma velocidade constante e, em particular, que a sua velocidade é a mesma em todas as direcções. Eis um postulado sem o qual nenhuma medição desta velocidade poderia ser tentada. Este postulado jamais poderá ser verificado directamente pela experiência. Poderá ser contradito por ela, se os resultados das diversas medições não forem concordantes. Deveremos nos sentir satisfeitos que não se dê tal contradição e que as pequenas discordâncias que se produzam possam facilmente ser explicadas.

O postulado, em todo o caso, conforme ao princípio da razão suficiente, foi adoptado por toda a gente. Quero lembrar que nos fornece uma nova regra para a determinação da simultaneidade, inteiramente diferente daquela que nós vimos enunciadas atrás. Admitindo este postulado, vejamos como foi medida a velocidade da luz. Sabemos que Roemer se serviu dos eclipses dos satélites de Júpiter e procurou determinar o quanto esses eventos se atrasavam relativamente à predição.

Mas como fez tal predição? Recorreu-se das leis astronómicas, por exemplo, a lei de Newton.

Os efeitos observados poderiam muito bem ser explicados se atribuíssemos à velocidade da luz um valor um pouco diferente do valor adoptado e se admitíssemos que a lei de Newton é aproximada. Somente seríamos conduzidos as substituir a lei de Newton por uma outra mais complicada. Deste modo, adoptamos para a velocidade da luz um tal valor que as leis astronómicas compatíveis com esse valor são tão simples quanto possível.

Quando os marinheiros ou os geógrafos determinam uma longitude, eles resolvem o problema de que nos ocupamos. Eles têm, sem estar em Paris, de saber a hora de Paris. Como o fazem?

Ora bem, levam um cronómetro sincronizado de Paris. O problema qualitativo da simultaneidade é reduzido ao problema quantitativo da medição do tempo. Não tenho de lembrar as dificuldades inerentes a este último problema porque já nele atrás insisti longamente.

Ou então, observam um fenómeno astronómico, tal como um eclipse da lua e admitem que é apercebido simultaneamente em todos os pontos do globo.

Tal não é inteiramente verdade, porque a propagação da luz não é instantânea. Se quisermos uma exactidão absoluta, haverá uma correcção a fazer de acordo com uma regra complicada.

Ou então, por fim, servem-se do telégrafo. É claro que a recepção do sinal em Berlim, por exemplo, é posterior à expedição desse mesmo sinal em Paris. É a regra da causa e do efeito analisada anteriormente. Mas posterior em quanto? Em geral, negligenciamos a duração da transmissão e encaramos os dois eventos como simultâneos. Mas, para ser rigoroso, faltava fazer uma pequena correcção por um cálculo complicado. Não a fazemos na prática porque seria ainda mais insignificante que os erros de observação. A sua necessidade teórica permanece, no entanto, no nosso ponto de vista, que corresponde ao de uma definição rigorosa.

Desta discussão retenho duas coisas:

1.       As regras aplicadas são muito variadas.

2.       É difícil separar o problema qualitativo da simultaneidade do problema quantitativo da medição do tempo. Quer nos sirvamos dum cronómetro, quer conheçamos o valor da velocidade de uma transmissão, como a da luz, porque não sabemos determinar medir uma tal velocidade sem medir o tempo.

É conveniente concluir. Nós não temos a intuição directa da simultaneidade e muito menos da igualdade de duas durações. Se acreditamos ter essa intuição, é uma ilusão. Nós substituímo-lo por intermédio de certas regras que aplicamos quase sem nos darmos conta. Mas qual é a natureza destas regras?

Não há regra geral, não há regra rigorosa, uma multiplicidade de pequenas regras aplicáveis a cada caso particular. Estas regras não se nos impõem e podemos divertir-nos a inventar outras. No entanto não nos podemos desviar sem complicar demasiado as leis da física, da mecânica, da astronomia.

Nós escolhemos então estas regras, não porque são verdadeiras, mas porque são as mais cómodas e poderíamos resumi-las deste modo:

«A simultaneidade de dois eventos, ou a ordem da sua sucessão, a igualdade de duas durações, deverão ser definidas de modo que o enunciado das leis naturais seja tão simples quanto possível. Por outras palavras, todas estas regras, todas estas definições são o fruto dum oportunismo inconsciente.»