Artigo de: Rogério Soares da Costa
Na primeira metade do século XVIII, um certo E. S. De
Gamaches, físico e matemático francês, escreveu uma obra de astronomia na qual
comparava os princípios científicos de René Descartes, o patrono das ciências
francesas, com aqueles do Sir Isaac Newton, a glória máxima da Royal Society. O
objetivo do obscuro autor era, como seria previsível, demonstrar a
superioridade do racionalista francês sobre o empirista britânico. Esse poderia
ser somente mais um capítulo da longa rivalidade que opõe franceses e ingleses,
mas há nele algo que supera em muito as querelas e disputas entre nações. Na
verdade, na discussão empreendida por De Gamaches está em jogo algo crucial
para a própria história da ciência.
Em termos gerais, De Gamaches criticava Newton fundamentalmente
por seu método. Segundo o polemista, o gênio britânico havia se limitado em
suas obras científicas a geometrizar os fenômenos físicos sem jamais propor
explicações para os mesmos. “Um fenômeno analisado geometricamente se torna
para ele um fenômeno explicado”, afirma De Gamaches. No fundo, para o francês,
Newton era bastante seletivo na escolha de seus problemas de estudo, só
tratando daquilo que podia ter uma descrição geométrico-matemática. O veredito
de De Gamaches é contundente e grave: Newton era ótimo geômetra, mas péssimo
físico.
Visões opostas
O que há de tão importante na diatribe de um obscuro físico
francês que, apegado ao mestre Descartes, distribuía perdigotos contra o gênio
de Isaac Newton numa época em que as ideias deste tornavam-se hegemônicas e
relegavam o cartesianismo ao esquecimento mesmo em terras gaulesas? A
importância da discussão reside naquilo que é posto em questão implicitamente:
“o que é fazer ciência?” Em outros termos, o que significa exatamente dar
explicação de um fenômeno físico? Será dar as suas razões últimas ou somente
fornecer uma descrição matemática acurada daquilo que é observado sem se
comprometer com questões concernentes à natureza do real físico?
Em suma, nessa pequena polêmica são confrontadas duas visões
opostas sobre a própria natureza da ciência. De um lado o cartesiano, para quem
a física deve, antes de tudo, dizer o que é o real, e, de outro está o
newtoniano que se limita a geometrizar os fenômenos sem se comprometer com
hipóteses sobre a natureza última do real. É bem conhecida a afirmação de
Newton no Escólio Geral dos Principia segundo a qual ele não “inventa
hipóteses”, referindo-se aí às especulações acerca das possíveis causas de
certas propriedades observáveis dos corpos. Há ainda discussões acadêmicas
sobre como interpretar corretamente essa e outras declarações de teor
semelhante espalhadas pelas obras do físico britânico, mas formou-se certa
tradição na qual elas são interpretadas como declarações de cunho
antiespeculativo ou antimetafísico. Newton estaria rejeitando a ideia de
derivar as suas teorias de considerações filosóficas sobre a natureza própria
das coisas e limitando-se a fornecer uma descrição matemática daquilo que pode
ser efetivamente observado.
Não importa tanto saber se era isso ou não que Newton queria
dizer naquelas declarações, mas sim perceber que essa interpretação enuncia uma
posição teórica possível com relação à natureza da ciência que foi e ainda é
abraçada por muitos filósofos e cientistas.
Embora Descartes quisesse refundar a ciência de seu tempo
sobre novas bases, ele ainda permanecia ligado à ideia antiga de um
conhecimento certo e verdadeiro do mundo físico. Toda a sua física se funda na
apreensão pelo sujeito pensante de princípios claros e distintos – e, portanto,
indubitáveis – a partir dos quais todo o edifício da ciência poderia ser
rigorosamente deduzido. Em outros termos, a metafísica funda a física e, sem
ela, qualquer ciência fica impossibilitada de realizar suas pretensões de
conhecimento verdadeiro e certo. Resta evidente que tais princípios primeiros
não são retirados da experiência e sim alcançados por meio de longas meditações
de cunho exclusivamente filosófico.
Ora, o conflito até aqui apresentado pode ser visto também
pelo ângulo das relações possíveis entre filosofia e ciência. Sob esse prisma,
os “cartesianos” seriam aqueles para os quais o fundamento último do
conhecimento não pode ser alcançado pela experiência, mas somente pelo
pensamento, o qual, através da razão, apreende os princípios mais gerais que
servirão de base para qualquer estudo do mundo físico. A favor de sua tese,
seus partidários poderiam citar o fato de que nenhuma predição pode verificar
definitivamente uma teoria, já que teorias falsas podem apresentar predições
verdadeiras.
Por outro lado, os “newtonianos” seriam aqueles para quem a
ciência deve definir-se por uma separação clara com relação a princípios
especulativo-filosóficos e ater-se somente a uma descrição acurada do
comportamento observável dos entes físicos e cujas predições sejam adequadas
aos experimentos conduzidos em condições controladas. Além disso, eles poderiam
apontar para os sucessos preditivos que a ciência acumula até nossos dias e
afirmar que, sob uma perspectiva prática, nada há que se exigir da ciência além
da acuidade observacional e experimental.
Acontece que, esquemáticas como são, essas posições tendem a
simplificar uma situação real que se apresenta de formas cada vez mais
complexas. Dificilmente alguém conseguiria subscrever integralmente a tese dos
“cartesianos” justamente pela evidência histórica de que projetos de submissão
da ciência à filosofia fatalmente arrastam a primeira para o terreno das
disputas intermináveis – e frequentemente inconclusivas – da segunda. Por esse
motivo, cientistas-filósofos como o físico, matemático e historiador da ciência
francês Pierre Duhem defenderam uma separação clara desses dois empreendimentos
cognitivos.
Por outro lado, a evidência historiográfica demonstrou conclusivamente
a influência mútua entre filosofia e ciência ao longo da história. Não raro
essa influência incluía elementos não tão filosóficos no sentido estrito do
termo, como teses teológicas, esotéricas e herméticas. Como explicar a grande
disputa travada entre newtoniano Samuel Clarke e Gottfried Leibniz sobre a
natureza do espaço como o sensorium divino somente em termos meramente
científicos?
Para citar exemplos mais recentes, o cosmólogo sulafricano
George Ellis, que trabalhou com o britânico Stephen Hawking, dedicou diversos
artigos científicos a explicitar e discutir os pressupostos
filosófico-metodológicos embutidos nas teorias da moderna cosmologia. Da mesma
forma, questões filosóficas sérias e prementes foram suscitadas pelas
declarações recentes de Stephen Hawking acerca das origens do universo e da
existência de Deus. Quantos pressupostos filosóficos e ontológicos estão
implicados em um só conceito como o “nada”? O que isso significa para um físico
é o mesmo que significa para um filósofo ou para um teólogo?
A diferença de significados não implica em um relativismo no
qual “tudo vale”, mas pode indicar um uso indevido de um termo para fenômenos
que não podem ser adequadamente descritos por ele. Conceitos buscam
identificar, entre outras coisas, diferenças específicas e irredutíveis dentro
dos fenômenos do real. E tais fenômenos podem ser encarados de diversas formas,
de acordo com seus múltiplos aspectos. Desse modo, o que cada ciência faz é
encarar um determinado conjunto de entes do real sob um ângulo particular,
concebendo-os de acordo com pressupostos ontológicos e metodológicos que, em
geral, só podem ser justificados por meios filosófico-argumentativos, ou seja,
meios externos à própria ciência. Nenhuma ciência pode justificar a si mesma,
já ensinava Aristóteles.
Relação conflituosa
Se a história tem comprovado a influência mútua entre
filosofia e ciência, isso não significa que essa relação tenha se dado de forma
harmoniosa e sem conflitos. Muito pelo contrário. Incompreensões, resistências,
rejeições e menosprezos de ambas as partes foram frequentes nessa história.
Ainda há hoje os que decretam a “morte da filosofia” e apontam a ciência como a
executora da sentença. Contudo, não se deve pensar que esses que anunciam a
morte da consoladora de Boécio sejam somente cientistas. Eles são também
filósofos. Alguns, inclusive, tentaram – e tentam ainda – transformar a
filosofia em ciência, adotando seus métodos e procedimentos. Outros se limitam
ao papel de “cães de guarda” dos cientistas, que latem e ameaçam quem ouse
questionar qualquer ponto do credo cientificista. Aparentemente, há filósofos
que não suportariam ver a filosofia como ancilla theologiae, mas sentem-se à
vontade ao vê-la no papel de ancilla scientiae.
Todavia, o cientificista, aquele que afirma que todo o
conhecimento possível advém exclusivamente da ciência, afirma ele mesmo não uma
teoria científica, mas uma tese filosófica cujo valor só pode ser avaliado por
meios argumentativos. Ao tentar escapar da filosofia, o cientificista se vê
obrigado a justificar o exclusivismo cognitivo da ciência apelando exatamente
para aquilo que pretendia negar.
Em uma palestra em Cambridge, o filósofo americano W. L.
Craig, ao comentar a afirmação de Stephen Hawking de que a filosofia está morta,
observou que aqueles que ignoram a filosofia são os mais propensos a cair em
suas armadilhas. E ele está correto. A inconsciência dos pressupostos que
informam toda e qualquer pesquisa, empírica ou não, frequentemente resulta numa
compreensão limitada e limitadora da própria realidade que se pretende
explicar. Não é raro que o cientista tome os objetos que sua metodologia
permite conhecer como os únicos elementos do real, reduzindo assim o todo a uma
de suas partes.
Ademais, essa tendência se manifesta também no desejo de
aplicar os resultados de teorias particulares a campos cada vez mais amplos, ao
ponto de se poder afirmar, sem risco de erro, que muitos cientistas buscam
alçar suas teorias à condição de metafísica última e fundamental da realidade.
Como Étienne Gilson assinalou diversas vezes, essa submissão do Ser a uma
ciência particular é uma tentação constante na história do Ocidente,
apresentando-se no logicismo de Abelardo, no matematismo de Descartes, no fisicismo
de Kant, no sociologismo de Comte e, por que não?, no biologismo de certos
neodarwinistas. Contra isso, o físico Werner Heisenberg – homem de alta cultura
e questões filosóficas profundas – advertia que tais projetos só poderiam se
fundar em conhecimentos científicos definitivos, mas que estes são sempre
aplicáveis em domínios limitados da experiência.
Tendência relativista
Como reação ao cientificismo, diversos filósofos e
estudiosos das ciências humanas empenharam-se em questionar os critérios de
racionalidade e validação do conhecimento, abraçando o relativismo como o
último bastião possível de resistência ao avanço das ciências empíricas. Tudo o
que existe são múltiplos discursos possíveis sobre o mundo e o discurso
científico é só mais um entre muitos, de modo que há pouca diferença entre o
Dr. House e o curandeiro de uma tribo. Não será necessário repetir aqui todos
os já tão bem conhecidos problemas lógicos e epistemológicos dessa posição.
Thomas Nagel já se deu o trabalho de elencá-los.
Embora equivocada, a reação do relativista manifesta
claramente a percepção de que o discurso científico se torna cada vez mais
hegemônico na sociedade hodierna. Praticamente não há um dia sem que o homem
moderno não seja bombardeado por uma série de “pesquisas científicas” que
“provam” que tal alimento faz bem à saúde, que tal outro prejudica seu
organismo ou que determinado comportamento é “natural” e que outro não o é. O
problema aumenta quando se tem em conta o poder que essas orientações têm de
moldar o caráter e o pensamento de milhões de homens e mulheres no mundo
inteiro. Sutilmente, o cientista vai se tornando não só o arauto da verdade,
mas também o conselheiro em assuntos muito distantes de sua especialidade
original. A pergunta óbvia é: “Por qual razão alguém deveria ouvi-los para além
de seu campo limitado de estudo?”.
Não ser um cientificista ou um relativista não resolve o
problema das relações da ciência com a filosofia e com outras atividades ou
dimensões humanas. Significa somente não abraçar nenhum dos extremos do debate.
É mais fácil apontá-los e rejeitá-los do que dizer em qual ponto entre esses
limites deve estar a verdade. Não há solução fácil para essa questão. Mas um
bom ponto de partida é reconhecer as diferenças entre filosofia e ciência e
tentar estabelecer um diálogo que não passe pela capitulação de uma das duas.
Isso significa, para a filosofia, abdicar do projeto “cartesiano” de determinar
a priori quais são os princípios metafísicos a partir dos quais todas as
pesquisas científicas devem se dar. E, para a ciência, atentar para o fato de
que o real jamais pode se esgotar ou se reduzir a qualquer um de seus aspectos
e, ao mesmo tempo, admitir que há perguntas legítimas e pertinentes que estão
fora daquilo que seus métodos permitem averiguar.
Princípios universais
Seria ocioso não admitir que a ciência alcança verdades
sobre o real. Não se constroem naves espaciais, satélites, celulares, aviões e
carros sem conhecer algo do mundo. Mas o que ela alcança são os aspectos
permitidos por sua metodologia e por seus pressupostos conceituais e
ontológicos. Escolhas filosóficas já estão presentes como elementos
constitutivos desse processo. Uma maior clareza com relação a esses pontos é
imprescindível para uma compreensão mais profunda da própria atividade
científica e de seus limites intrínsecos.
Cumpre notar que a filosofia não deve viver “à reboque” da
ciência, restringindo-se a pensar e a refletir somente sobre problemas e dados
levantados por esta última. Há que se admitir que a filosofia tem suas próprias
questões e que, para muitas delas, a ciência tem pouco ou nada a contribuir
para sua solução. Da mesma forma, o cientista não precisa de um filósofo ao seu
lado no laboratório questionando cada passo do processo de pesquisa e pedindo sempre
novas razões para suas ações. O melhor encontro entre a filosofia e a ciência
ainda se dá na consciência do indivíduo que almeja compreender o mundo em sua
integralidade e que, para isso, busca apreender as relações entre os diversos
níveis do real e uni-los sob princípios cada vez mais universais.
Rogério Soares da Costa é pesquisador, professor e tradutor.
Possui graduação em Filosofia pela UERJ (2005), mestrado (2007) e doutorado
(2011) em Filosofia pela PUC-Rio. É pesquisador de pós-doutorado na UERJ, onde
investiga as relações entre metafísica e física na obra do físico, filósofo e
historiador da ciência Pierre Duhem.